Minha geração rendeu muita gente boa. Quando falo em 'minha geração' estou considerando aqueles caras uns cinco anos mais novos ou mais velhos do que eu, que são meus amigos e estão por aí tirando onda há mais ou menos uma década. São as figuras com as quais, em um determinado e crucial momento, a convivência foi um elemento central na definição do tipo de maluco que a gente seria dali pra frente.
Desse bolo, saíram bons jornalistas, poetas, cineastas (no caso, pelo menos um), pesquisadores, professores, artistas plásticos e músicos, entre outros inúteis. E minha geração rendeu um bom ficcionista, o melhor entre eles, Pablo Capistrano.
legenda autoexplicativa e desnecessária: capa do livro |
São três contos bastante acima da média da ficção que vem sendo publicada em Natal recentemente. Li, quase numa paulada só, nesse fim de semana.
No livro, Pablo aprofunda a relação com a literatura fantástica que havia ficado evidente em seu romance de estreia, Pequenas Catástrofes, e faz uma pequena viagem sentimental aos anos 90, a época em que éramos jovens, mas nem tão inocentes assim.
O conto de abertura, 'A Escada de Jacó', retoma um tema clássico da literatura do gênero, o doppelgänger, o duplo, que está por aí assombrando escritores há um bom tempo. No enredo, um norte-rio-grandense descobre um 'antípoda' seu, mais famoso e bem sucedido, morando no Rio Grande do Sul.
Dá pra lembrar, por exemplo, de Allan Poe e de Borges – quem melhor soube desenvolver esse tropos. Talvez por isso, por discorrer sobre um tema já recorrente, seja a história que menos funcionou para mim.
Uma narrativa interessante, mas que peca em alguns momentos como, logo no início, na reação exagerada do protagonista ao fato singular que desencadeia a trama. Em outros, dá pra sentir a mãozinha do autor forçando a barra para instaurar o sentimento do fantástico, aquele estranhamento que perturba a realidade ficcional, sem, no entanto, escangotar para o fantasioso, como ensina o tio Todorov.
Esse mergulho no fantástico está bem melhor resolvido em 'O Sutra do Girassol'. O caleidoscópio de referências usadas por Pablo se mostra mais eficaz na narrativa sobre Ariel, um boêmio cuja vida é alterada por um evento cósmico inusitado que o atinge durante uma mijada.
Vê-se ali alguns temas caros a Lovecraft, apesar do estilo mais espontâneo e coloquial adotado por Pablo – o que nos remete também às histórias de Vonnegut, até pelo humor que permeia a narrativa. Há tempo ainda pra uma escorregadela kafkiana e uma alusão sem-vergonha a este resenhista que será devidamente vingada no momento apropriado.
E aí chegamos à Grande História deste livro de Pablo. Em 'Saudades do Amor', o relato sobre uma antiga paixão de um amigo, Rudá, serve de pretexto pra o narrador dar um breve e intenso mergulho na década de 1990.
Não sei quanto a vocês, mas eu estava lá. Digo, nos anos 90. E apesar da mística e do saudosismo que envolvem quaisquer lembranças referentes aos anos de juventude de alguém, ser um adolescente, ou começar a se despedir da adolescência naquela Natal era uma experiência plena de som, fúria e tédio.
Quer dizer, tinha todos aqueles livros, as bebedeiras, as festas sensacionais em que dificilmente se comia alguém, os programas de índio a la 'yanomâmi tur' e a tentativa diária e muitas vezes frustrada em romper a pasmaceira que cobria a cidade feito a bruma de fumaça deixada pelas fogueiras de São João.
E tinha o Nirvana. Puta merda, como aquele cara podia entender tão bem a insuportabilidade tropical da nossa cidade mesmo vivendo em Seattle, onde chove 300 dias por ano? Não sei. Mas funcionava que era uma beleza.
Pablo foi substituído por um gaúcho gordinho |
Como um descarado discípulo beatnik, Pablo mistura boa ficção com lembranças mais ou menos reais e é irresistível, pelo menos para quem esteve lá – como eu, o exercício de identificar locais, situações e amigos que emergem no conto.
A droga que Rudá e seus amigos tomaram no cais da Rua Chile (LSD? Tetrapharmakon? Madeleines?) me fez pensar em quantos de nós ainda nos falamos pelo menos uma vez por ano, num encontro fortuito; quantos piraram e nunca mais foram vistos; quantos morreram; quantos viraram crentes e fingem olhar alguma vitrine ao nos cruzarmos no corredor de um shopping.
Ao mesmo tempo – que besteira – tudo aquilo já passou, é finito, ficou pra trás, ca-bum. E talvez nem tenha sido uma história assim tão interessante. No final, só o que restou mesmo foi muita gente boa por aí, e um bom ficcionista, o melhor dentre nós, para nos enganar numa tarde de domingo contando histórias mais ou menos reais de quando éramos jovens e nem tão inocentes assim.
***
P.S.: Havia prometido esta resenha pra ontem, mas nesse feriadão a internet e o universo conspiraram – o que nunca ocorre a meu favor.
Um comentário:
Bueno, se vc avaliza, vou ler.
confio no seu bestunto crítico.
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