(De minha parte, como o 'caractere' pós-moderno do cyberpunk era ponto passivo entre as fontes, tava tudo tranquilo.)
Uma das leituras bacanas foi a de Bachelard. Moacy Cirne já havia despertado minha atenção para a obra desse pensador derna a época de 'Quadrinhos: Sedução e Paixão' (para mim, disparado, o melhor livro do mestre).
Como exercício, fiz esse pequenino ensaio a partir de algumas ideias presentes no capítulo de abertura de 'A Intuição do Instante'. Obviamente, apoiado sobre os ombros de Cirne.
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O
instante bachelardiano e os quadrinhos
Para
se entender o instante, ‘unidade ontológica’ de percepção do tempo proposta
pelo historiador francês Gaston Roupnel e desenvolvida filosoficamente por
Gaston Bachelard em A intuição do
Instante, pode-se utilizar a metáfora
dos quadrinhos e sua linguagem.
No
primeiro capítulo da obra, Bachelard busca conceituar o instante e o contrapõe
ao conceito de duração desenvolvido por Henri Bergson. A duração, em Bergson,
pressupõe um tempo absoluto, um todo, cuja natureza seria definida pela duração
– um sentido de permanência do passado, no qual o instante seria uma espécie de
cristalização ou ápice da duração, “um corte artificial que ajuda o pensamento
do geômetra”, nas palavras de Bachelard. Nesse sentido, passado e futuro
compõem uma única forma, um bloco no qual o presente seria dado pela ação da
inteligência sobre a vida.
Bachelard
propõe inverter a lógica bergsoniana e defende que a unidade primordial do
tempo é o instante, sendo a duração uma soma destes: “a duração é feita de
instantes sem duração, como a reta é feita de pontos sem dimensão”. Neste
sentido, o tempo é descontínuo e sua duração é uma construção da memória a
partir de instantes significativos.
A
sensação de duração que temos, ao contrário de figurar como uma prova sensível
e intuitiva da realidade da duração, se dá porque entre os instantes
significativos, ou atos conscientes de ruptura, nos deparamos com uma
infinidade de instantes vazios de significados, nulos – essa nulidade, esses ‘encadeamentos de nada’, constituem a natureza da duração sensível.
Assim, Bachelard propõe enquadrar o pensamento de Bergson como uma filosofia
da ação (que se estende no tempo, mas na qual seria impossível definir seu
ponto de partida ou final); enquanto o pensamento de Roupnel seria uma
filosofia do ato (marcado pela irrupção do instante na descontinuidade
temporal).
Uma
maneira de visualizar esse conceito bachelardiano pode ser pela metáfora do quadrinho. Ao
desenhar uma história em quadrinhos, o artista se propõe a cristalizar, no
interior do requadro [1], um
momento-chave da narrativa, rico em expressividade e em significado, mas ‘congelado’
no tempo. A continuidade narrativa é garantida pelo encadeamento entre os
quadros, no qual o quadro seguinte cristaliza outra situação posterior no
tempo.
O
corte gráfico [2]
é, nos quadrinhos, um espaço de significação reservado ao leitor. Ao vermos um
quadro colocado ao lado de outro, seguindo o sentido de leitura a que estamos
habituados, conferimos continuidade a eles, e completamos, na imaginação, os
fatos ocorridos entre o momento anterior e o seguinte.
O
que o desenhista faz, então, ao criar o requadro e seu conteúdo, é capturar o
instante significativo, o momento de expressividade ideal, o ato de ruptura que
impulsiona a narrativa, tal como propõe Bachelard. Por sua vez, o corte gráfico
representaria o encadeamento de instantes nulos, que produzem a falsa sensação
de duração.
Ampliando
essa relação, temos na página da revista, em seu conjunto de quadrinhos, a
representação de uma duração bachelardiana – ou seja a reunião de instantes
transgressores que compõem a memória do passado irremediavelmente destruído.
Transpondo
a metáfora para o conceito de tempo em Bergson, chegamos a um quadrinho
improvável, mas desafiador de ser imaginado, no qual a página seria uma mancha
gráfica contínua, sem requadros e cortes gráficos, em que os personagens escorreriam
por situações e cenários encadeados indistintamente. Porém, como representá-los
em seu antes e depois narrativo, uma vez que o traço deveria dar conta dos
deslocamentos espácio-temporais dos personagens numa cinemática que não
contemplaria sucessão de posições, mas continuidade?
[1] A
borda do quadrinho
[2] O
espaço em branco, a hachura existente entre um quadro e outro numa HQ.
Um comentário:
Interessante visão sobre o tempo nos quadrinhos.
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