Quem sou eu

Jornalista e pesquisador de histórias em quadrinhos, dividido entre Natal e João Pessoa por tempo indeterminado.

12.07.2011

saramago

"Abordar um texto poético, qualquer que seja o grau de profundidade ou amplitude da leitura, pressupõe, e ouso dizer que pressuporá sempre, certa incomodidade de espírito, como se uma consciência paralela observasse com ironia a inanidade relativa de um trabalho de desocultação que, estando obrigado a organizar, no complexo sistema capilar do poema, um itinerário contínuo e uma velocidade coerente, se obriga ao mesmo tempo a abandonar as mil e uma probabilidades oferecidas pelos outros itinerários, apesar de estar de antemão ciente de que só depois de os ter percorrido a todos, a esses e àquele que de facto escolheu, é que acederia ao significado último do texto, se o há, podendo suceder, por outro lado, que a leitura alegadamente totalizadora assim obtida viesse a servir, tão-somente, para impor portanto a necessidade de uma nova leitura. Todos carpimos a sorte de Sísifo, condenado a empurrar, pela montanha acima, uma sempiterna pedra que sempiternamente rolará para o vale, mas talvez o castigo do desafortunado homem seja saber que não virá a tocar, sequer, em uma só de quantas pedras, inúmeras, ao redor, esperam o esforço que as arrancaria à mobilidade.

"Não perguntamos ao sonhador por que está sonhando, não requeremos do pensador as razões do seu pensar, mas de um e outro quereríamos conhecer aonde os levaram, ou levaram eles, o sonho e o pensamento, aquela pequena constelação de brevidades a que costumamos chamar, por necessária, se bem que insatisfeita, comodidade, conclusões. Porém, ao poeta - sonho e pensamento reunidos - não se lhe há de exigir que nos venha explicar os motivos, desvendar os caminhos e assinalar os propósitos. O poeta, à medida que avança, apaga os rastros que foi deixando, cria atrás de si, entre os dois horizontes, um deserto, razão por que o leitor terá de traçar e abrir, no terreno assim alisado, uma rota sua, pessoal, que no entanto jamais se justaporá, jamais coincidirá com a do poeta, única e finalmente indevassável. Por sua vez, o poeta, tendo varrido os sinais que, durante um momento, marcaram não só o carreiro por onde veio, mas também as hesitações, as pausas, as medições da altura do sol, não saberia dizer-nos por que caminho chegou aonde agora se encontra, parado no meio do poema ou já no fim dele. Nem o leitor pode repetir o percurso do poeta, nem o poeta poderá reconstituir o percurso do poema: o leitor interrogará o poema feito, o poeta não pode senão renunciar a saber como o fez."

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Esse é o trecho inicial do prólogo escrito por José Saramago para o poema 'O menino e o travesseiro', de Horácio Costa, publicado pela Geração Editorial. Achei tão totalmente demais que precisava compartilhá-lo aqui com vocês.

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