Achei covardia reproduzir apenas o prólogo de Saramago ao livro de Horácio Costa e não dar nenhuma palhinha do poema que motivou o texto. Um poema, digamos, à altura de sua apresentação. 'O menino e o travesseiro' traz um texto só, meio narrativo, meio contemplativo - e denso por inteiro. Não é um poema muito extenso, mas dá para destacar uns trechos sem o prejuízo do todo.
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No trânsito entre nome e objeto,
vivendo sua imprecisão,
a coisa é sempre única:
inaugural, fora da língua,
trapiche que invade a noite,
a sensação persiste em sua unicidade.
Não se move, sequer os olhos,
o menino que à paisagem só desfruta
e por completo a pode habitar.
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Em nossa infância da percepção,
colamos sentidos como antefaces
ao que não tem sentido;
se nos seduz o inevitável,
percorremos mundo sem pensar nos pés:
vive o caminho o homem
e nas praias todas mergulha,
está sem estar no páramo
cuja acolhida estima
e a morte quando vier
encontrá-lo irá a algum lugar.
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O caminho de ida
nunca é igual se o repetimos;
quando o fazemos, sem dar-nos conta
erguemos o intermitente véu
que cobre a efígie da velhice
e antes é o pânico à repetição
que o desafio da vez primeira
o que alimenta com suas enzimas
a magra dieta da gregariedade,
mesmo que privemos com os espinhos
ou que um pregador nos ameace
com zelo excessivo e dedo em riste;
por isso, e só por isso, Bartolomeu
o mar não voltou mais a ver
e retém as pálpebras fechadas
as cores que bordam a Serra:
as epífitas, as bromeliáceas,
as suculentas, os verdes vários,
os musgos, as samambaias
que alfombram os monolitos
por onde escorrem as cascatas
e suam as nuvens.
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Agora, o melhor de tudo (ao menos, para mim): comprei esse livro numa queima no Hiper Bompreço, por R$ 6,90. Show de bola.
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