Quem sou eu

Jornalista e pesquisador de histórias em quadrinhos, dividido entre Natal e João Pessoa por tempo indeterminado.

7.27.2014

Tungstênio

Ler ‘Tungstênio’, álbum do carioca Marcello Quintanilha, é receber uma senhora aula de narrativa para os quadrinhos, que só não é gratuita porque você precisa comprar o livro. Nas 184 páginas de história, acompanhamos uma ciranda frenética, que se espraia pelo espaço e pelo tempo, na qual se envolvem vários personagens durante uma simples ocorrência policial em Salvador, Bahia.

Durante um dia de sol na capital soteropolitana, um sargento reformado, seu Ney, e um pequeno traficante de drogas, Caju, flagram uma dupla usando explosivos para pescar, de olho na facilidade da manobra para conseguir o pescado. Pressionado por seu Ney, Caju é levado a chamar Richard, um policial do qual é informante, para dar um fim à atividade dos pescadores. Richard, por sua vez, é casado com Keira, mas o relacionamento deles está por um fio.

Basta esse fiapo de história, guiada por quatro pessoas comuns, envolvidas com os pequenos problemas cotidianos de cada um, para Quintanilha construir uma HQ envolvente, frenética, impossível de se largar a leitura.

Há de ressaltar que Quintanilha é tanto desenhista quanto roteirista de seus álbuns, dominando os dois ofícios como poucos. Artista versátil, como se pode ver ao comparar seus diferentes trabalhos, em ‘Tungstênio’ ele aposta num traço naturalista, rico em detalhes, com preenchimentos em tons de cinza, que se apoia num tracejado grosseiro para ressaltar volumes e sombras.

Além disso, a reprodução meticulosa do cenário arquitetônico de Salvador e o apuro na composição corporal e fisionômica dos personagens conferem uma tom realista que reforça a atmosfera de ‘vida real’ de suas histórias. Quintanilha não tem vergonha em explorar as possibilidades gráficas da linguagem dos quadrinhos: a expressividade das onomatopeias e dos balões se integra aos desenhos de tal forma que os sons em ‘Tungstênio’ são quase táteis. Um bom exemplo é quando os personagens discutem entre si, ou quando o autor retrata as explosões provocadas pelos pescadores.

Seus quadros não se conformam com as facilidades do plano médio, porém a variedade de enquadramentos dificilmente está ali para demonstrar algum virtuosismo: há uma relação direta com o ritmo e as necessidades da narrativa. Um dos vários momentos em que isso ocorre no álbum é no conflito entre Ney e Caju que provoca a entrada de Richard na história.

Aí, temos o Quintanilha roteirista: uma história aparentemente tão banal envolve pessoas cheias de motivações e dramas que uma expressão facial, um plano-detalhe, ajudam a revelar. Outra boa sacada é fragmentar o desenvolvimento da narrativa, mesclando passado, presente e futuro, tempo narrativo e tempo psicológico, para, aos poucos, ir desnudando o que move cada um dos personagens. A própria capa do álbum meio que já antecipa para o leitor o desenvolvimento simultâneo de várias tramas. A hesitação de Keira entre deixar o marido ou ir ao seu encontro ilustra bem essa situação. Certamente, o leitor mais desatento precisará de mais de uma leitura para perceber essas nuances (eu precisei).

Outro trunfo de Tungstênio está no texto, divididos em duas modalidades. Primeiro, temos os balões, com os diálogos dos personagens. Quintanilha busca, ao máximo, se aproximar do registro oral contemporâneo, da fala das ruas. Repetições, gírias, frases recheadas de elipses e interrupções, vale tudo para alcançar uma ‘naturalidade’ nos diálogos, um ritmo próximo ao de uma conversação. É uma aposta arriscada, que pode empobrecer o discurso construído, ou dificultar o entendimento do leitor, mas o autor evita essas armadilhas muito bem.

Num outro aspecto, temos as legendas, que habitualmente nos quadrinhos contemporâneos trazem a voz do narrador. Em Tungstênio, esse narrador não propriamente conduz ou apresenta os fatos, ele se instala na cabeça dos personagens, conversa com eles – e, muitas vezes, torna-se os personagens, assume a voz deles, fazendo com seja difícil para o leitor saber ao certo quem está presente naquele momento. Essa ‘polifonia’, como dizia Bakhtin, não é uma alquimia simples, apesar de Quintanilha nos fazer achar que sim.
Como disse um certo autor (cujo nome não vou lembrar), não existem histórias ruins, existem escritores ruins (ou algo parecido). Marcello Quintanilha, definitivamente, não é um escritor ruim.

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