Quem sou eu

Jornalista e pesquisador de histórias em quadrinhos, dividido entre Natal e João Pessoa por tempo indeterminado.

10.31.2013

magic and loss

“When the going gets weird, the weird turn pro.” – Hunter S. Thompson


A essa altura do championship você já deve saber que Lou Reed morreu. Caput. Finito. E se nem imagina quem diabos é Lou Reed, o que diabos estará fazendo aqui? Com todo mundo falando sobre a importância do cara para a história do rock’n’roll, sobrou muito pouco a dizer. Então, vou escrever sobre o que Reed representou para mim (afinal, este é meu blog, ora bolas, e tudo aqui gira em torno de meu umbigo).

As influências más dos signos do zodíaco me levaram a crer que, mesmo morando em Natal, uma ilha ensolarada cercada por bandas de forró e axé por todos os lados, o grande lance era curtir um rockzinho antigo.

Sou uma cria do começo dos anos 90 – aqueles primeiros anos de adolescência que meio que definem como a criatura será pelas próximas décadas, até que alguma epifania ou morte súbita altere os rumos do cosmos... Então, nada de música alegrinha (tá bom, tinha o Out of Time do REM com o chicletinho do Shine Happy People, mas logo depois, acho que para compensar, os caras lançaram Automatic for The People). O álbum da minha geração foi o Nevermind, daí você tira o climão qual era...

Modos que descobrir Velvet Underground e Lou Reed foi como desenterrar o Australopithecus que dava sentido à cadeia evolutiva que vinha desde o Joy Division até, sei lá, Belle & Sebastian.

Lia uma Veja (era um lobisomem reacionário), quando me chamou atenção uma matéria sobre o lançamento do disco último disco de uma lenda do rock que eu mal conhecia. O cara era Lou Reed e o disco, Magic and Loss. A obra inteira falava sobre a morte de dois amigos, um dos quais, o compositor Doc Pomus, encarou um câncer bem barra e teve aquela morte lenta e melancólica que às vezes acompanha quem dançou numa dessas. Mas, pô, eu tinha o quê?, 13 anos, a morte era algo distante e sem sentido (hoje é só sem sentido) e mais distante ainda era a chance de encontrar esse disco em alguma loja daqui de Natal e ter dinheiro para tal empreitada.

No ano seguinte, já estudando na ETFRN, conheci um cara chamado Renzo Torrecuso (que na época era Terraguzo, mas explicar essa falsidade ideológica é uma longa história). Renzo é filho de Madê Weiner, artista plástica, boa-praça, que não tinha problema em emprestar as fitas-cassete originais (que nem disco e CD, com encarte e tudo; existiu isso, juro). E sabe quais ela me passou (parece que trouxe de Londres), na boa? O Magic and Loss e Walk on the Wild Side – The Best of Lou Reed.

Alguns meses depois, conheci uns caras esquisitões, Everton Dantas e Aristeu Araújo, com uns papos sobre música, poesia, e outras coisas estranhas. Só dei trela quando Arista sacou um cassete (sempre eles!) com o disco The Velvet Underground & Nico, o primeirão. Cascaviando os vinis de meu pai, que aos poucos ele abandonava num projeto suicida de trocar tudo por CDs, findei achando uma pequena obra-prima, para muitos a últimas do homem, o álbum New York.

Quer dizer, em menos de um ano, eu passara de um completo idiota desinformado, para um completo idiota que sacava uma coisa ou duas. E, cara, afirmo sem medo: esses discos mudaram minha vida. Se foi para melhor ou pior, foda-se.

Agora, os discos.

Vindo de lá pra cá, The Velvet Underground & Nico era uma pedrada no quengo, só parecida com a que recebi ao ouvir a Divina Comédia ou Ando meio Desligado pela primeira vez. Cada faixa é um clássico, difícil dizer a melhor. Tinha ali uma química entre a poética do Reed, um lance urbano, meio Jim Carroll e Bob Dylan, sua concepção pré-punk da música (“três acordes e já estamos perto demais do jazz”, ou algo assim, ele disse), com o experimentalismo avant-garde de John Cale e a voz estranhamente gélida e cálida de Nico.



Olha a capinha vagal
O The Best, por sua vez, é meio cafajeste. Quer dizer, Reed tinha saído da gravadora RCA, num fim de relacionamento que acabou rendendo o revolucionário e inaudível Metal Machine Music, e os caras, para aproveitar a raspa do tacho, lançaram esse The Best, reunindo o melhor que Reed havia lançado até 77. Ou seja: pra um ouvinte de hoje, faltam aí uns 35 anos de carreira. Mas a seleção é um primor. Estão representados os álbuns solos (fundamentais) Lou Reed, Berlin, Transformer, Sally Can’t Dance e Rock’n’Roll Animal e umas pérolas como Coney Island Baby e o ladão-B Nowhere at all. Em suma, as faixas nas quais o cara definiu seu papel na história do rock após o fim do Velvet (como se fosse pouco).

New York, de 1989, foi uma despedida em alto estilo numa década meio negra pr’essa galera que veio dos anos 60/70. Reed não foi exceção. Depois de umas patinadas feias, o disco, uma ode à cidade onde nasceu, viveu e morreu, é a coisa-mais-linda-desse-mundo-de-deus. Tá tudo ali: o rock básico e bem executado, a pegada dylanesca, as letras em formato de crônicas urbanas.


E, por fim, o Magic and Loss. Um disco triste, pesado, profundo e qualquer outro adjetivo fúnebre e macambúzio que você conseguir evocar. Mas, também, um disco que fala sobre a vida – até porque faz parte. É como se fosse uma missa para quem partiu. Cada música tem um subtítulo sobre o ‘estado de espírito’, ou o mistério da via-crúcis que ele – e o defunto – passaram. Começa com a doença; o sofrimento numa cama de hospital; a desesperança com o tratamento; a morte; cremação; a missa; enterro; o luto; negação; a superação. Todos os passos, dolorosamente cantados.

É o disco perfeito pra entender que Reed já tava de boa com a vida – e com a morte. Daí que não dá pra ficar com peninha porque o bicho morreu. Foram 71 anos. Tá de bom tamanho até pra quem é vegetariano e faz pilates, imagina pro Reed.

Ouvindo What’s good, tá logo no refrão:

What's good?
(Life's good)
But not fair at all


Já em Power and Glory, ele começa com metáforas bíblicas até descer ao mundano e doloroso:

I was visited by the power and the glory
I was visited by a majestic hymn
Great bolts of lightning lighting up the sky
electricity flowing through my veins

E então:

I saw a great man turn into a little child
the cancer reduce him to dust
His voice growing weak as he fought for his life
with a bravery few men know

I saw isotopes introduced into his lungs
trying to stop the cancerous spread
And it made me think of "Leda And The Swan"
and gold being made from lead

Só pra Little Jimmy Scott soltar, em sua voz andrógina:

(I wanted all of it, all of it, all of it)
All of it
(Not just some of it, all of it, all of it)
All of it


A narrativa da morte de Pomus/Rita em Magician é um belo momento da poética de Reed:

Doctor you're no magician
and I am no believer
I need more than faith can give me now

I want to believe in miracles
not just belief in numbers
I need some magic to take me away

I want some magic to sweep me away
I want some magic to sweep me away
Visit on this starlit night
replace the stars the moon the light, the sun's gone
Fly me through this storm
and wake up in the calm


É interessante notar como Reed mistura imagens eruditas e a vida prosaica nova-iorquina, uma marca de suas letras. Como em Sword of Damocles:

Now I have seen lots of people die
from car crashes or drugs
Last night on 33rd st.
I saw a kid get hit by a bus
But this drawn out torture over which part of you lives
is very hard to take
To cure you they must kill you
the Sword of Damocles above your head



Sem falar que poucos discos podem encerrar-se com uma música como Magic and Loss - The Summation, dizendo algo como:

They say no one person can do it all
but you want to in your head
But you can't be Shakespeare and you can't be Joyce
so what is left instead


 p.s.: Muitos anos depois, entrei numas de comprar vinis, mas nunca tive uma radiola. Um deles foi o Songs for Drella, que passei adiante num jogo com Alexis Peixoto que envolveu também um Kick Out the Jams, do MC5. Não repitam isso em casa, crianças.

Songs for Drella mostra que a parceria de Cale e Reed envelheceu como uísque em barril de carvalho. Os dois cantando em memória de Andy Warhol é de lascar o cano.


p.s.2: A citação do Thompson não é só pra vocês pensarem que eu sou um maluco que encaixa o Doutor em tudo que faço. Ele fez na literatura o que Reed mostrou em suas canções: não existiu porra de paz e amor. Tava todo mundo doidão de ácido pra sacar isso.

p.s.3: Gosto de Lulu. Fodam-se as disposições em contrário.


p.s.4: Muita gente de mais tarimba falou sobre a trajetória de Reed no rock. Recomendo a leitura dos artigos do Forastieri, do Barcinsky, do Braulio Tavares e do Alexandre Honório (pra ficar na brodagem).

p.s.5: Qualquer dia desses conto a história de minha primeira (e única) audição de Metal Machine Music. Mas vocês só podem divulgar depois que eu e meus descendentes estivermos mortos, enterrados e esquecidos. A pessoa mais indicada no mundo para tentar explicar este álbum para você chama-se Lester Bangs.

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