O fanzine não morreu, nem virou outro bicho – ele apenas vai ali, dá um tempo, e volta. E quando volta, que maravilha!
Por estes dias, num espaço de mais ou menos um mês, pude conferir o lançamento de dois zines que atestam a longevidade – e a vontade de viver – desse tipo de publicação. Antes só um aviso: vão rolar uns comentários a seguir bem no estilo street fighting man, sem compromissos. Para leituras mais cabeçudas sobre fanzines, recomendo você procurar o livro do Henrique, o do Edgard e o organizado pela Cellina.
Capa do zine "tr3sdoi2", editado pelo Alfredo Albuquerque |
Primeiro, os quadrinhos. Tão lá Guga Schultze e Lor, cada um com uma tirinha e um cartum. Lor tem uma pegada meio Laerte de sindicato – e, por favor, ser comparado ao Laerte não é demérito para ninguém. Já Schultze surpreende nos cartuns sobre Beatles e Luiz Gonzaga, com um traço grotesco e sujo deveras interessante. E tem ainda um artigo do Moebius sobre desenhos eróticos que dispensa comentários.
As poesias de Luciane Gasperis me chamaram pouca atenção, fora os versos finais de 'sincronicidade':
agora no meu campo de visão somente 16 bonecas
para serem decapitadas: uma a cada 30 minutos de
espera. é possível que sobrem algumas se tudo
correr bem. Que sorte.
Já a prosa está bem em campo com os contos 'muito lindo o carinha' de Letícia Palmeira e 'estranhos em terra estranha', de Alfredo Albuquerque.
Sintam o drama do apuro gráfico do "tr3sdoi2" |
O que chama a atenção na iniciativa de Albuquerque é que a tecnologias digitais não precisam necessariamente ser o inimigo vindo do estrangeiro que matou nosso amigo, o fanzine. O apuro técnico do Tr3sdoi2, com seu projetinho gráfico bem definido e agradável de ler e manusear, aponta como o computador pode quebrar aquele galho para quem quiser montar sua própria publicação – nesse caso, ajuda pra caralho manjar desse lance de design para impressos, como o Albuquerque mostra em seu trabalho. Aliás o diálogo com o mundo digital começa já na seleção dos textos. Um mamão lava a outra.
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Capa do 'Com Carinho': simplesmente foda o detalhe do arame da encadernação |
Pelo menos é o que querem nos fazer crer Beto Leite e Ramon Ribeiro, filhotes desgarrados da revista Catorze com o zine Com Carinho, lançado durante a Virada Cultural Internacional da Rua Chile, no ano passado.
Projeto gráfico tosco-conceitual, na ida e na volta |
É um plano maquiavélico, explicitado na página de abertura:
“Você faz uma busca por rabiscos guardados em gavetas e cadernos velhos da faculdade. Você junta aquilo tudo. Faz uma bola de papel amassado. Perto da barata morta. A bola cai no chão. Você levanta chateado. Apanha aquela tralha. A barata. E com ela na palma da mão, o estalo. Aquela vontade de fazer um fanzine. A vontade que nunca some. Que vai e vem. Como os mendigos da rua, a prostituta da esquina e o urubu no céu. Que se aproxima e pousa na janela do quarto.”
Mas essa vontade louca não é só tempestade e ímpeto: todo o desleixo, o papel meticulosamente amassado e rasgado a mão, os desenhos mal acabados de colorido borrado fazem de 'Com Carinho' um zine-conceito, cuja própria manufatura dialoga com sua proposta poética marginal, falsamente naïf.
Os textos, todos eles, levam a sério a intenção ‘visceral’ de seus autores: é no corpo que tudo se resolve, seja o sexo, a fome, a violência ou, quem sabe, o tédio aquilo que move os personagens.
Um achado.