Existe o centro de João Pessoa e existe o epicentro de João Pessoa. Muita gente confunde. Um fica nos arredores da lagoa. O outro fica no Mofado’s Bar. Apenas no Mofado, por exemplo e obséquio, você poderia conhecer alguém como Mateus, o argentino que viveu por três semanas em Caicó.
Mateus saiu dos pampas acreditando em peace, love and malabares – e resolveu ser artista de rua. Um plano de vida que inclui cair na estrada e perigas ver. Nesse rolé troncho, foi bater em Caicó.
Os fracos não têm vez em Caicó. Lá, dois em cada um habitante abre mão de ser normal. Muito normal em termos de Seridó. Caicó só não tem muito treino com doido que fica no sinal jogando coisa pra cima. Até Mateus chegar.
Artista de rua depende do povo. Em Caicó, tem doido pra tudo. Mateus foi um sucesso. O lance de Mateus é simples, coragem às vezes fala mais alto que habilidade, apesar de um bom artista contar com doses generosas das duas. Caicó, ele percebeu logo, tinha um ponto dos sonhos: a BR 427, que vem de Jardim do Seridó em direção a Pombal, unindo os dois Seridós. Carro pra lá e pra cá. Virado na porra.
E Mateus lá, no sinal, jogando os malabares pro alto. Ganhou uma grana boa, logo de saída. Foi no mercado central, do lado, e comprou o que quis: biscoito, iogurte, queijo (“caro pra caralho”, segundo ele, mas certamente manteiga ou coalho). Trocou umas moedas e veio o primeiro susto. Em vez dos dezesseis contos em espécie, recebeu uma “nota”, como ele me disse, ou o famoso recibo, um papel assinado pelo dono da cantina atestando o valor. De posse do documento, Mateus alugou um quarto em Caicó, esse legítimo paraíso pós-capitalista.
Porém, vida de artista não é moleza, vide a do autor destas linhas, que nada receberá por elas. Então nosso herói resolveu procurar um canto para armar sua barraca. Foi quando ele descobriu a ilha de Sant’Ana. Pra quem não sabe, a Ilha de Sant’Ana é um Xangri-lá, um Hy-Brasil, observando Caicó da altura dos séculos e pensando: “Que diabo é dez?”
Foi lá onde Mateus armou sua barraca, num dos palcos que vira e mexe agitam o animado São João da cidade ou a festa da padroeira. Mas quando eu digo no palco, era no palco mesmo. Em cima, protegido de chuva e vento ruim. A intimidade era tanta que Mateus sabia onde ficavam os disjuntores que controlavam as luzes da estrutura, e as desligava quando era hora de ir pra cama.
De manhã sempre tinha uma escola levando a meninada pra conhecer o pedaço e as professoras ofereciam um mamão ou um cuscuz. Mas cuscuz do que mamão, tá ligado. Um suquinho de fruta e uns cigarrinhos de artista também que ninguém é de aço inox. Mateus até foi convidado para se apresentar numa delas.
De todas as cidades potiguares, Caicó foi a melhor (apesar de eu ter achado ele meio sem critérios, porque me disse que gostou muito de Mossoró também). Mateus amou Caicó. Mas também o bicho é cagado, vejam só: num dos dias, em frente ao farol, o tempo fechou. Mateus tava lá, fazendo sua arte no sinal, quando começou a chover. Encantado com aquilo tudo, o motorista fez o que qualquer faria diante de um mago: baixou o vidro e mandou aquela nota de vinte reais. That’s Caicó.
Posts do Exílio
O que vejo da janela
Quem sou eu
- Alex de Souza
- Jornalista e pesquisador de histórias em quadrinhos, dividido entre Natal e João Pessoa por tempo indeterminado.
4.28.2017
I love you, Caicó
Jornalista e pesquisador de histórias em quadrinhos, dividido entre Natal e João Pessoa por tempo indeterminado.
5.18.2016
Cine & Medicina - Bicho de Sete Cabeças
Este texto aqui é apenas uma breve reflexão sobre o filme Bicho de Sete Cabeças (Brasil, 2001, dirigido por Laís Bodanzky), como parte das atividades do projeto de extensão Cine & Medicina, do Centro de Ciências Médicas.
Primeiro, uma escolha muito feliz do projeto, uma vez que é uma das raras produções nacionais a tratar do tema dos antigos hospitais psiquiátricos, além de ter sido um filme de bastante sucesso à época do lançamento, em 2001 – foi responsável por projetar a carreira de Rodrigo Santoro, até então apenas um dos rapazes de Malhação.
Bicho de Sete Cabeças deve muito à linguagem de videoclipes, que apenas se popularizou no Brasil em meados dos anos 1990 (nos EUA, foi na década anterior), e isso se deve principalmente por dois motivos: o filme é narrado pelo ponto de vista de um jovem (Neto, personagem de Rodrigo Santoro) e pelo fato de a narrativa se apoiar bastante no uso da música como fio condutor (a trilha mistura temas compostos por André Abujamra e canções de Arnaldo Antunes).
Além disso, os videoclipes são caracterizados por uma montagem frenética, de planos de curta duração e o uso de efeitos visuais – esses traços se acentuam no filme para mostrar os momentos de crise mental do protagonista, por exemplo.
Outra forma de representar os conflitos internos de Neto é naquilo que se chama de “desenho de som”. A edição de som, que envolve a valorização de ruídos externos, como os barulhos ambientes, aliados a flashbacks sonoros e efeitos musicais, aparece constantemente para que identifiquemos esses momentos como equivalentes às confusões mentais do personagem.
Um lance que gosto muito no filme é ausência de final feliz: o último plano não nos oferece sequer uma conciliação no conflito entre Neto e seu pai, que deflagra a história. Sentados na calçada, os dois se encontram dilacerados e o pai certamente está arrependido, mas não há demonstrações de carinho entre eles, o distanciamento permanece.
Por fim, queria deixar uma crítica. O filme é claramente ambientado nos anos 1990 (Neto anda de skate, se diverte pixando muros e vai a uma festa de hip hop), por isso, o episódio que deflagra o internamento do personagem me parece anacrônico. Isso porque a história se baseia no romance ‘Canto dos Malditos’, em que Austregésilo Carrano narra sua própria experiência de ter sido internado à força pela família em 1974 por causa do consumo de maconha. Não me parece factível que tal coisa pudesse ocorrer no final dos anos 1990; posso até estar enganado, mas como alguém que estava entrando na vida adulta na época do lançamento do filme, não me lembro de ter visto ou ouvido falar em algo parecido durante minha adolescência.
É isso.
p.s.: O autor, Carrano, morreu em 2008. E, se não me engano, acho que ele é aquele coroa que tenta assediar Neto na piscina quando ele viaja com um amigo para passar o fim de semana em Santos.
p.s.2: A carta que Neto entrega ao pai, na verdade, é a letra da canção 'Judiaria', de Lupicínio Rodrigues, que também foi gravada por Arnaldo Antunes.
Primeiro, uma escolha muito feliz do projeto, uma vez que é uma das raras produções nacionais a tratar do tema dos antigos hospitais psiquiátricos, além de ter sido um filme de bastante sucesso à época do lançamento, em 2001 – foi responsável por projetar a carreira de Rodrigo Santoro, até então apenas um dos rapazes de Malhação.
Bicho de Sete Cabeças deve muito à linguagem de videoclipes, que apenas se popularizou no Brasil em meados dos anos 1990 (nos EUA, foi na década anterior), e isso se deve principalmente por dois motivos: o filme é narrado pelo ponto de vista de um jovem (Neto, personagem de Rodrigo Santoro) e pelo fato de a narrativa se apoiar bastante no uso da música como fio condutor (a trilha mistura temas compostos por André Abujamra e canções de Arnaldo Antunes).
Além disso, os videoclipes são caracterizados por uma montagem frenética, de planos de curta duração e o uso de efeitos visuais – esses traços se acentuam no filme para mostrar os momentos de crise mental do protagonista, por exemplo.
Outra forma de representar os conflitos internos de Neto é naquilo que se chama de “desenho de som”. A edição de som, que envolve a valorização de ruídos externos, como os barulhos ambientes, aliados a flashbacks sonoros e efeitos musicais, aparece constantemente para que identifiquemos esses momentos como equivalentes às confusões mentais do personagem.
Um lance que gosto muito no filme é ausência de final feliz: o último plano não nos oferece sequer uma conciliação no conflito entre Neto e seu pai, que deflagra a história. Sentados na calçada, os dois se encontram dilacerados e o pai certamente está arrependido, mas não há demonstrações de carinho entre eles, o distanciamento permanece.
Por fim, queria deixar uma crítica. O filme é claramente ambientado nos anos 1990 (Neto anda de skate, se diverte pixando muros e vai a uma festa de hip hop), por isso, o episódio que deflagra o internamento do personagem me parece anacrônico. Isso porque a história se baseia no romance ‘Canto dos Malditos’, em que Austregésilo Carrano narra sua própria experiência de ter sido internado à força pela família em 1974 por causa do consumo de maconha. Não me parece factível que tal coisa pudesse ocorrer no final dos anos 1990; posso até estar enganado, mas como alguém que estava entrando na vida adulta na época do lançamento do filme, não me lembro de ter visto ou ouvido falar em algo parecido durante minha adolescência.
É isso.
p.s.: O autor, Carrano, morreu em 2008. E, se não me engano, acho que ele é aquele coroa que tenta assediar Neto na piscina quando ele viaja com um amigo para passar o fim de semana em Santos.
p.s.2: A carta que Neto entrega ao pai, na verdade, é a letra da canção 'Judiaria', de Lupicínio Rodrigues, que também foi gravada por Arnaldo Antunes.
Jornalista e pesquisador de histórias em quadrinhos, dividido entre Natal e João Pessoa por tempo indeterminado.
10.07.2015
Arqueologias
Cascaviando no meu computador, achei uns backups de textos antigos; coisa de 10, 11 anos atrás, que julgava perdidos há tempos. A maioria era de matérias que escrevi para o Diário de Natal (RIP) – e apaguei quase tudo.
Engraçado notar como pouco mudou no estilo dos textos jornalísticos que produzi desde então. Sinal de que parei no tempo ou de que a técnica é só uma mesmo? Não sei.
Quer dizer: mudou sim. Como tenho escrito cada vez menos matérias e, quando me atrevo no jornalismo, é mais para artigos ou reportagens, tenho tornado minha presença mais direta no texto (como por exemplo agora, escrevendo na primeira pessoa).
Mas, voltando. Muita coisa foi pro lixo porque eu começava a escrever em casa, para terminar na redação, então tinha muito texto pela metade. Decidi guardar alguns, por valor sentimental, como uma cobertura do Festival DoSol e outra do Mada; minha primeira matéria com Elino Julião; um tal festival PIPOCA, também do DoSol; um texto muito engraçado que escrevi em parceria com Carlos Magno Araújo sobre a infância de José Mauro de Vasconcelos (não tive tempo de fazer o texto final, encarrilhei as informações e Magno custurou o resto); entrevistas com Jorge Mautner, Toninho Vaz, Banda de Pífanos de Caruaru. Retalhos de memórias.
Vários projetos de livros que não saíram do canto; um poema de Gilmara Benevides ‘Babirush’ e um dos velho Francis. Um artigo acadêmico horroroso para me ver livre da disciplina de Comunicação e Semiótica. Roteiros nunca filmados (a maioria de documentários e um pra disciplina de Tânia Mendes). Um trabalho de Helena pra sétima série.
Imagino quanta coisa não ficou no velho computador que Flavia levou quando foi embora com as crianças... Será que um dia poderemos reconstituir nosso passado listando os arquivos em nossos hard drives?
Engraçado notar como pouco mudou no estilo dos textos jornalísticos que produzi desde então. Sinal de que parei no tempo ou de que a técnica é só uma mesmo? Não sei.
Quer dizer: mudou sim. Como tenho escrito cada vez menos matérias e, quando me atrevo no jornalismo, é mais para artigos ou reportagens, tenho tornado minha presença mais direta no texto (como por exemplo agora, escrevendo na primeira pessoa).
Mas, voltando. Muita coisa foi pro lixo porque eu começava a escrever em casa, para terminar na redação, então tinha muito texto pela metade. Decidi guardar alguns, por valor sentimental, como uma cobertura do Festival DoSol e outra do Mada; minha primeira matéria com Elino Julião; um tal festival PIPOCA, também do DoSol; um texto muito engraçado que escrevi em parceria com Carlos Magno Araújo sobre a infância de José Mauro de Vasconcelos (não tive tempo de fazer o texto final, encarrilhei as informações e Magno custurou o resto); entrevistas com Jorge Mautner, Toninho Vaz, Banda de Pífanos de Caruaru. Retalhos de memórias.
Vários projetos de livros que não saíram do canto; um poema de Gilmara Benevides ‘Babirush’ e um dos velho Francis. Um artigo acadêmico horroroso para me ver livre da disciplina de Comunicação e Semiótica. Roteiros nunca filmados (a maioria de documentários e um pra disciplina de Tânia Mendes). Um trabalho de Helena pra sétima série.
Imagino quanta coisa não ficou no velho computador que Flavia levou quando foi embora com as crianças... Será que um dia poderemos reconstituir nosso passado listando os arquivos em nossos hard drives?
Jornalista e pesquisador de histórias em quadrinhos, dividido entre Natal e João Pessoa por tempo indeterminado.
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